Se esse filho da puta tem do que se arrepender, porque pediu anonimato?!
(Do Estado de Minas de Hoje)
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CALEM-SE
A confissão de um censor
Funcionário da DCDP revela bastidores da censura, derruba mitos sobre o trabalho e diz como ficou marcado pelos vetos
Leonardo Cavalcanti
É mais uma sala pequena no centro comercial e engarrafado de Brasília. Na porta não há nenhuma indicação do que funciona ali. Ao entrar, o visitante sente um cheiro forte de cigarro e avista uma mesa com pelo menos 10 anos, três cadeiras surradas, agendas de plástico que, de tão antigas, já deixaram de servir como calendário e, na parede, a menos de dois metros do chão, um crucifixo de arame. Há um aparelho sintonizado numa emissora que toca apenas músicas orquestradas. O som parece não divertir tanto o dono dos objetos que compõem todo aquele ambiente. M.J, de 68 anos, é um policial aposentado que, entre os anos 1970 e 1980, atuou na Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP). Hoje, a sala comercial serve para pequenos bicos de advocacia, cada vez menos frequentes.
Em três conversas, a primeira de 40 minutos e as duas últimas de quase três horas de duração, o censor concordou em falar ao Estado de Minas sobre a atividade na época da ditadura. Pediu, entretanto, para não ser identificado por conta do estigma que carrega. M.J é um homem metódico, separa grupos de canetas e se exaspera caso o interlocutor altere a disposição dos objetos. Ao lembrar dos casos no período em que atuou como censor, revela raciocínio linear. Intercala opiniões com as informações do trabalho sem perder o fio em um único momento. Parece ter se preparado para um dia contar a história do contrato firmado com o Estado brasileiro para avaliar e censurar obras artísticas:
"Alguns dos censores tentam esquecer. Eu não, não tenho do que me arrepender, não fiz nada demais, não machuquei alguém. Sou um cara normal"
"Com o fim da ditadura, os censores passaram a ser vistos em artigos acadêmicos como broncos, mal preparados, gente a ser enganada por artistas, que, ao escrever em sentido figurado, conseguiam ludibriar a censura. É engraçado ler sobre companheiros sacaneados por terem aprovado determinada música que passou para a história como uma obra de arte contra os anos de chumbo. Não era bem assim.
Na década de 1960, houve um recrutamento aleatório de censores por parte dos militares. Gente que entrou na censura sem concurso, pela janela, e não teve uma preparação satisfatória para o trabalho. Mas isso foi no início. Essas pessoas passavam até pouco tempo na função por conta dos baixos salários. A partir de 1970, a coisa mudou de figura. Passaram a ser feitos concursos públicos e começou a se exigir nível superior.
Entrei na censura em busca de estabilidade. Tinha acabado de me formar, mas estava com 32 anos e sabia que não teria pique para iniciar a carreira com gente muito mais nova do que eu. Assim, fiz o concurso para o Departamento de Polícia Federal nos primeiros anos da década de 1970. Na época, para cargo de nível superior, existiam as vagas de perito, delegado e censor. No primeiro caso, os candidatos eram formados em ciências exatas, no segundo, em direito. Restava o cargo de censor, que previa nível superior em qualquer área.
No quadro de censores tinha de tudo, gente formada em direito, letras, pedagogia e jornalismo, por exemplo. Tinha gente preparada, que sabia o que fazer e como fazer. Havia muitas mulheres, a maioria era mulher. Pessoas que falavam três idiomas. Pode ter havido descuidos, sim, mas há casos de liberação consciente. Eu, por exemplo, jamais vetaria uma música como Pedro Pedreiro, de Chico Buarque. Havia uma crítica social na letra, mas você acha que o povão iria entender tal sofisticação? Então, por que censurar se poucas pessoas iriam entender? Não seria possível fazer revolução social a partir de Pedro Pedreiro.
Agora, para ser sincero, nunca gostei daquele trabalho de analisar obras artísticas, mesmo que na época tivesse um certo status. Ser amigo de um censor era um privilégio. A gente tinha sempre ingressos para teatros, shows e cinemas. Existia uma regra que obrigava os produtores a repassarem tíquetes para a gente. No fim de semana, se você não queria ir a um espetáculo, passava para alguém, para um amigo.
Ao acabar a censura, as coisas mudaram. Ter atuado na DCDP virou um estigma, quase como uma doença. Depois de ter sido censor, tive sempre o cuidado de me preservar na minha carreira funcional. Não podia assumir determinados postos de destaque, pois tinha medo de alguém revelar que eu tinha sido censor e minha vida virar um inferno. Alguns dos censores tentam esquecer. Eu não, não tenho do que me arrepender".
Leia amanhã - Os dribles de Chico Buarque, Marcos Valle e Vinicius/Toquinho.
E mais: Como funcionava a máquina da burocracia repressora.
domingo, abril 25, 2010
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Um comentário:
Fino demais, esse texto!!!
Tô de cara.
Abraços
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